02/01/2011

Flaubert ilustrado


"É preciso assinalar o notável trabalho de copista-calígrafo de Amadeo e tirar as devidas consequências. A sua familiaridade com o texto é demonstrada pela total ausência de hesitação na restituição das palavras e das frases, sem erros de acentuação ou pontuação, pela exactidão da sequência: não há uma palavra ou frase reduzida ou aumentada de tamanho para que o final de uma folha se prossiga para o início da outra, não há qualquer solução de continuidade ad hoc. Estes argumentos não esgotam, no entanto, o teor completo que Amadeo tem do conto de Flaubert. É que ele não segue sempre a regra de iniciar cada página com um parágrafo - o que teria sido possível, dado que a mancha do texto caligrafado não é homogénea -, escolhendo muitas vezes o segundo ou o terceiro, o penúltimo ou o último período de um parágrafo, e interrompendo mesmo no meio de um período, depois de um ponto e vírgula. 
(...) as passagens escolhidas são sempre decisivas, marcantes, a nossa leitura recebe uma orientação luminosa, fica dotada com chaves preciosas para a sua interpretação, concedendo-nos, simultaneamente, meios para vincular essas escolhas às decisões formais da ilustração. Trata-se de um verdadeiro gesto hermenêutico, não será de mais salientá-lo e voltar a salientá-lo. Por outro lado, é frequente surpreender um contraste entre a ilustração e o impacto das palavras de Flaubert, obrigando-nos a excedê-las, no confronto com outras obras de Amadeo do mesmo ano e posteriores. Tomam aqui dianteira os XX Dessins, nos quais está está impresso o clima do imaginário medieval, paisagem e actividades, no qual Amadeo se espelhou e isto completamente fora dos cânones românticos (o que também aconteceu nos primeiros anos poéticos de Rilke): a exaltação do cavaleiro, do caçador e do guerreiro, a magia da floresta, dos animais e o poder do falcão. Na Légende, porém, a magia das mulheres (tão presente nos XX Dessins) foi completamente absorvida pelo falcão."

Maria Filomena Molder in Gustave Flaubert e Amadeo de Souza-Cardoso, A Lenda de São Julião Hospitaleiro, (edição fac-similada), Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian e Assírio & Alvim, 2006, pp. 17-18. 

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